João
Bosco Botelho
Mesmo com o grande avanço para entender a saúde e a
doença como partes do corpo, com textos claramente dirigidos para retirar dos
deuses e deusas a primazia da cura, não ocorreu ruptura violenta com as ideias
e crenças religiosas que conviviam com as mentalidades da época. É possível que
essa conciliação cautelosa de Hipócrates e de outros médicos da escola de Cós,
reconhecendo a importância da materialidade das doenças sem atacar o panteão taumaturgo,
em especial, o deus Asclépio, tenha contribuído para que Hipócrates evitasse o
mesmo destino de Sócrates.
Segundo a mitologia grega, Asclépio era filho de Apolo e
da ninfa Coronis. Apolo matou Coronis e entregou o filho aos cuidados do
centauro Quiron, famoso médico, que instruiu Asclépio na arte de curar e na
delicadeza dos movimentos das mãos do cirurgião. Finalmente, Asclépio
consolidou-se nas mentalidades como o principal deus protetor da Medicina e dos
médicos. Em sua homenagem foram construídos muitos templos. O mais famoso deles
é o de Epidauro, na ilha de Cós, cuja reconstrução arqueológica mostrou salões,
vestiários e alojamentos para médicos e doentes, salas de banho e teatro para a
recreação.
É certo que a figura do médico, como especialista social,
dependente das crenças e idéias religiosas tenha chegado aos gregos com poucas
mudanças, oriunda de tempos muito anteriores. Quando a Escola de Cós estava no
apogeu e Hipócrates reconhecido como autoridade médica, havia harmoniosa
convivência entre a Medicina de Hipócrates e as práticas de curas dos
sacerdotes do templo de Asclépio. Como comprovações destacam-se as estelas de mármores
encontradas no templo de Epidauro com inscrições de agradecimento a Asclépio
pela cura obtida.
É pertinente, mais uma vez, assinalar que o conjunto
teórico atribuído a Hipócrates e aos seus discípulos, mesmo obtendo importantes
avanços em comparação às práticas médicas das cidades-reinos do Egito e da
Mesopotâmia, não provocou explicitamente ruptura com as crenças e idéias
religiosas do panteão grego. Essa situação de convivência harmônica entre
médicos e os sacerdotes de Asclépio despertou interesse e recebeu críticas
ácidas, como as atribuídas a Aristófanes, que encenava ridicularizando o sacerdote
de pouco escrúpulo.
O juramento do Tratado
Ético de Hipócrates começa com a clara aliança com os deuses e deusas: “Eu juro por Apolo, médico, Asclépio, Hígia e
Panaceia, por todos os deuses e todas as deusas...”. Essa posição, de
modo espetacular, atravessou os séculos, sendo mantida em diferentes formas até
hoje.
A análise
do conteúdo ético do juramento de Hipócrates constitui claríssima conduta com o
objetivo de evitar a prática médica prejudicial aos doentes, semelhante ao
código de Hammurabi, porém sem a agressividade punitiva babilônica.