Amigos do Fingidor

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Escolha do médico: elo de confiança


João Bosco Botelho


A doença não existe só em si mesma; em certo instante, pode ser entendida como abstrata, por ser nominada e classificada pelas pessoas, como história de longa duração.
A conjunção simultânea dos sinais e sintomas que a doença determina no corpo humano, impõem a observação pelo médico ou outro curador da doença como mal. Essa situação assume na prática como o ponto de partida para retirar as doenças das construções teóricas abstratas.
A consequência da enfermidade, entendido como mal que deve ser extirpado, constitui o principal pilar que alicerça a abordagem do doente, estruturando o elo de confiança entre o enfermo e o médico, não somente como fenômeno biológico, mas também parte da totalidade sociocultural de ambos, do curador e do doente. O controle das endemias sempre esteve diretamente ligado a essa realidade. O historiador Jaques Le Goff é enfático: "A doença não pertence somente à história superficial dos progressos científicos e tecnológicos, mas à história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, instituições, representações e mentalidades."
Um dos exemplos mais marcantes é a hanseníase. Essa doença começou a desaparecer da Europa, no século 17, trezentos anos antes do início do tratamento efetivo. Aqui reside um dos pontos cruciais do atual entendimento da medicina enquanto pratica social: é preciso que as escolas de medicina repensem as metodologias para que os alunos compreendam a dimensão social da doença.
A análise cultural das doenças pode contribuir também para esclarecer como se processa a escolha que o doente faz na procura do médico ou do curandeiro, consolidando o elo de confiança.  Em determinadas culturas distantes milhares de quilômetros entre si, esse encaminhamento é concretizado de modo semelhante, isto é, as pessoas se baseiam no sistema referencial dos amigos e não somente em indicadores objetivos do êxito profissional.
A milenar crença de que a doença é castigo divino ainda é marcante em muitas culturas.  Após a escolha do curador-popular, não necessariamente do médico, as práticas se distanciam rapidamente. Em certo sentido, em especial na construção do elo de confiança, a medicina popular pode ser mais competente que a medicina das universidades. O médico tende como resultado da sua formação desvinculada do sociocultural, abordar exclusivamente a doença em compartimentos corpóreos, enquanto que o curador popular se envolve com o dominante cultural e o utiliza no objetivo de curar.
A compreensão das enfermidades como forma de desvio social foi teorizada por Talcott Parsons (1902-1976), em 1951, foi marcada pelo etnocentrismo americano da década de cinquenta que acabou legitimando os Relatórios Flexner (Abraham Flexner, 1856-1959), publicado em 1910, que fechou mais da metade das faculdades de medicina e reformulou completamente o ensino da medicina nos Estados Unidos, ao defender: "O paciente tem a obrigação de buscar ajuda técnica competente (fundamentalmente, um médico) e cooperar no processo de recuperação".
Essa conduta fortaleceu a medicina e a morte hospitalar e fixou relação de absoluta dependência entre o doente e o médico. É evidente que o estudo de Parson é inaceitável nos países onde a maioria esmagadora da população não tem acesso à medicina hospitalar.