Amigos do Fingidor

terça-feira, 31 de outubro de 2017

São João Batista


Pedro Lucas Lindoso


Esta semana se comemora o dia de finados. Aqui em Manaus, o “chique” é ser enterrado no Cemitério São João Batista. Dizem que o do Tarumã é longe. Há outras cidades com cemitérios em honra a São João. Pelo que sei, no Rio de Janeiro, Fortaleza, Aracaju e até em Juazeiro do Norte-CE são cidades em que São João é reverenciado em cemitérios.
O Cemitério São João Batista no Rio de Janeiro conta com um excelente acervo de arte tumular, estátuas e outras obras de artistas renomados. O nosso aqui em Manaus também têm esculturas de grande valor artístico e arquitetônico. Todavia, há jazigos em que o bom senso foi esquecido ou morreu junto com o homenageado.
João Batista é um dos santos mais retratados e reverenciados na arte cristã. Ele se alimentava de gafanhotos e mel silvestre. Apresenta-se em veste de pele de camelo e um cinto. Está quase sempre junto a um cordeiro, imagem que evoca Jesus, o Cordeiro de Deus.
João, cujo nome significa “Deus é misericórdia”, é o último profeta do Antigo Testamento. A Igreja o homenageia tanto no dia do seu martírio, em 29 de agosto, quanto no do nascimento, em 24 de junho. É também patrono dos maçons.
Quando levo pessoas para conhecer a Catedral de Brasília, marco arquitetônico magnífico de Niemeyer, sempre me perguntam: Por que a imagem de João está só, à direita de quem entra no templo? Do outro lado ficam os outros três evangelistas: Mateus, Marcos e Lucas. Estes três evangelhos são chamados de sinóticos, pois tem muitas semelhanças entre si e podem ser comparados em seus textos. Já o de João foi escrito para a comunidade dos gentios, na Ásia Menor. É o único que não é sinótico.
Aqui em Manaus a pergunta que não quer calar entre os passantes pelo pórtico do Cemitério São João Batista é: o que significa mesmo LABORUM META?
A explicação dada por meu pai era que ali se terminavam os trabalhos. Ele então meditava sobre quão efêmera, passageira, transitória é nossa existência. E tudo termina. É o fim dos trabalhos.
O trabalho só não termina para Carlinhos Zona Leste. Todo ano ele fatura uma grana extra no dia de finados. Vende água, cerveja e refrigerante nos arredores do São João Batista. E explica:
– Vela e flores são importantes para os mortos. Os vivos precisam de algo para aliviar a sede. Faz muito calor nessa época aqui em Manaus.


segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Cultura, tradição e escritura 3/4


Tenório Telles


Machado e “a crítica pensadora”

No dia 8 de outubro de 1865, Machado de Assis publicou, no Diário do Rio de Janeiro, uma crônica intitulada “O ideal do crítico”. O texto, considerando seu caráter argumentativo reflexivo, aproxima-se do ensaio, embora conserve o tom de diálogo peculiar característico do cronista. Machado antecipa muitas questões que serão objetos de debate no século seguinte. Ao versar sobre a crítica, intima os estudiosos a exercitarem
a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata(...) a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada(...) condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença – essas três chagas da crítica de hoje –, ponde em lugar deles, a sinceridade, a solicitude e a justiça – só assim teremos uma grande literatura (ASSIS, 1979, p. 798)

A tradição e o domínio dos procedimentos criativos não são suficientes para gerar a obra literária – ou as obras de arte em geral. Um elemento particular é imperativo na faina criativa – o talento: entendido como atributo de uma sensibilidade artística singular (como diz Eliot (1989, p. 39): “o fragmento de platina”, prefigurado na mente do poeta): “quanto mais perfeito for o artista, mais inteiramente estará nele o homem que sofre e a mente que cria; e com maior perfeição saberá a mente transfigurar as paixões que lhe servem de matéria-prima”.
Talento, conhecimento e emoções mesclam-se no processo de gestação da obra de arte. Essa não é uma experiência destituída de tensão e de um forte componente demiúrgico. O texto escrito (poesia ou prosa) é gerado nas entranhas de seu criador: nutre-se de seu sangue, de seus sonhos e razão, de suas emoções e angústias mais profundas. Por isso, o ato criativo é uma experiência de morte e de vida, em que o artista sacrifica tempo e muito de si mesmo para que a criação nasça e seja compartilhada socialmente. A escritura é um raio que brota dos abismos do ser, pois, como afirma Rainer Maria Rilke (2011, p. 134): “A cada obra de arte vem ao mundo algo novo, uma coisa a mais”. Esse novo a que se refere é também continuidade da linhagem a que se vincula todo agente da criação – enriquecendo, com seus esforços e realizações criativas, o patrimônio artístico da humanidade.
A inquietude e o desejo de dizer de si e do mundo, que movem o artista, são forças geradoras da criação. Desassossego e falta expressam a humana condição num tempo e mundo estiolados, esvaziados de seus fundamentos: época precária, opaca e inominável – fênix destituída de sua mágica recriadora. Encantados pela esfinge do paraíso consumista, os seres humanos perdem-se entre as sombras e a paralisia de uma vida inautêntica. A arte é o antídoto para esse viver letárgico e arruinado. Resta-nos a Palavra como possibilidade de testemunho desse estar-no-mundo indiferente, mas também como libertação – ou como disse Fernando Pessoa (apud PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 105): “uma confissão de que a vida não basta”. Não basta se não for vivida com encanto, com consciência e como ato libertário. A beleza é o sangue capaz de reavivar a existência e restabelecer os fundamentos primordiais da civilização.


domingo, 29 de outubro de 2017

sábado, 28 de outubro de 2017

Fantasy Art - Galeria


Yannick Bouchard.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A Canção de Amor de J. Sebastião


Zemaria Pinto


Sigamos então, tu e eu,
enquanto Manaus se estende sob o céu
como um paciente anestesiado sobre a mesa.

Caminhemos pelas mesmas ruas,
quase desertas a estas horas,
sob uma bruma eliotiana,
contando as fachadas dos hotéis de conveniência,
ouvindo ao longe a doce música das sirenes.

Ah, Manaus, Manaus,
o mais vil de teus poetas
vomita sua sintaxe indefinida
arrastando-se no lodo da Cachoeira
em busca de alguma felicidade provisória
ou uma dose violenta de qualquer coisa
mergulhando a alma nessa tenra madrugada de outubro.

Abraço o poeta e o beijo que deposito em sua boca
é amargo e fedido.
Peço uma tangerina e mais outra
e o cheiro que toma o ar me embriaga
mais que toda a cerveja e toda a urina do banheiro fétido.

O poeta sussurra alguma coisa sobre
as moças assassinadas / da praia da Ponta Negra
e fala de espectros e histórias de amor
e eu mal consigo perceber o movimento de sua língua de chumbo.
Tomo suas mãos nas minhas e ele adormece
murmurando preces pelas moças assassinadas.

Ah, Manaus, Manaus,
quanta poesia desperdiçada
nas flores que o rio insiste em devolver à areia
num invólucro de espuma.
Onde estão tuas crianças, cidade?
Onde estão tuas mulheres, teus velhos?
E tuas úmidas meninas túmidas?
Em que longínqua guerra fratricida eles sucumbiram?

Ah, maninha,
não me curvo às urgências do teu sexo
ou ao discurso mudo dos teus bêbados.
Seria a poesia uma doença tropical?
A bruma cai em flocos e tem gosto de açaí.
Precisamos beber algo quente
que nos anuncie a manhã,
como um galo ou uma fábrica.

Dá-me tua mão.
Ainda há tempo.

Tratado ético de Hipócrates


João Bosco Botelho


No fantástico livro Tratado Ético, no capitulo “A Lei”, Hipócrates afirma no primeiro parágrafo:
“A Medicina é de todas as profissões a mais nobre, e, entretanto, por ignorância dos que já a exercem e a julgam superficialmente, ela é apresentada no último plano... Mas as coisas sagradas se revelam somente aos homens sagrados, sendo proibido de ensinar aos profanos e aos que não são iniciados nos mistérios da ciência”.
Parece não haver dúvida do fato que os teóricos da Escola de Cós, ao mesmo tempo em que afastavam as ideias e crenças religiosas das práticas médicas, mantiveram o aspecto sagrado da Medicina.
Um dos vestígios históricos mais impressionantes dessa ligação da Medicina com os ritos do panteão grego é a data de comemoração do dia do médico – 18 de outubro, que corresponde, na mitologia grega, ao dia em que o deus-médico Asclépio, filho de Apolo, era celebrado na Grécia Antiga.
Asclépio, o deus protetor da Medicina, também taumaturgo, filho também da bela Corones, era festejado no dia 18 de outubro. Asclépio foi educado pelo centauro Quirão para ser mais cirurgião do que médico, talvez para proteger os cirurgiões, já que naquela época as complicações das cirurgias eram mais frequentes, se comparadas com as práticas médicas não invasivas.
 Ainda sob a perspectiva de proteger a vida, a construção do panteão de Asclépio deixou o legado de duas filhas, Hígia e Panaceia, vinculadas aos tratamentos clínicos, e dois filhos, Podalírio e Macaão, citados por Homero, que se distinguiram como cirurgiões na guerra de Tróia.
Nos séculos seguintes, Asclépio também representado por uma serpente enrolada num bastão da madeira, recebeu fama inimaginável, algumas vezes promovendo ressurreições dos mortos e curando todos os doentes que não conseguiam a saúde pelos favores de outros deuses e deusas. Contudo, temendo que a ordem do mundo fosse alterada pelas ressurreições, Zeus determinou a morte de Asclépio com os raios dos Ciclopes.
Mais uma vez, a mitologia grega se ajustava à realidade do cotidiano: ressuscitar os mortos não faz parte da natureza do mundo!
Esse conjunto teórico da ética médica manteve estrita ligação com o Direito, ambos valorizando a vida, vigiando e punindo práticas que pudessem prejudicar a saúde de qualquer pessoa.
A presença dessa busca é abundante e densa de conceitos éticos e morais que integravam o homem à polis, na Grécia do século 4 a.C., no livro de Platão, As leis, e nos de Aristóteles, A Política e Ética a Nicômaco.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Fantasy Art - Galeria


Michel Mobius.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Aniversário de Manaus


Pedro Lucas Lindoso
    
O saudoso Senador Jeferson Peres escreveu o clássico Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei. Editado pela Valer e creio com edições esgotadas.
Evocar significa trazer à lembrança, à imaginação. Evoca-se o passado ou até espíritos! Já avocar é chamar a si, atribuir-se. Nossa língua e suas armadilhas.
Ninguém soube usá-la tão bem quanto Manuel Bandeira em suas belas poesias. Daí, inspirado em seu poema “Evocação do Recife”, fiz a paráfrase “Evocação de Manaus”, que ora se republica em homenagem ao aniversário de nossa cidade sorriso.


EVOCAÇÃO DE MANAUS
Pedro Lucas Lindoso

Manaus
Não a Hong Kong amazônica
Não a Paris dos Trópicos dos exportadores da hévea brasileira
Não a Manaus dos aproveitadores
Nem mesmo a Manaus que aprendi a amar depois
– Manaus das indignações libertárias
Mas a Manaus sem história nem literatura
Manaus sem mais nada
Manaus da minha infância
A Rua Henrique Martins onde eu brincava de manja
e partia as vidraças da casa de dona Iaiá
Seu Pio era muito velho e usava roupas antigas
sempre de linho branco
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Boca de Forno!
Forno!

A distância, as vozes macias das meninas politonavam:
Terezinha de Jesus
De uma queda foi ao chão

(Dessas quedas muitas
teriam caído no esquecimento...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em loja de turco!
Outra contrariava: Casa de família!
Seu Pio achava sempre que era loja do centro
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua Recife...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua Paraíba
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua Municipal
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era a Rua 13 de maio
...onde se ia ao cinema ver filme proibido
Rio Negro
– Rio Negro
Lá longe o bairro do Japiim
Banheiros de palafitas
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! O Rio Negro alagando as ruas do centro
E nos beiradões dos igarapés e igapós
os caboclos destemidos em canoas altaneiras

Novenas
Boi-bumbá
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Rio Negro
– Rio Negro
Rua 13 de Maio onde todas as tardes passava a tacacazeira
Com cuias, tucupi para tacacá
E o vendedor de cascalho
O de sorvetes
que se chamava picolé e não era industrializado
Me lembro de todos os pregões:
Tambaqui, pirarucu, sardinha e pacu
Dez ovos por um cruzeiro
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pela internet nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do caboclo amazonense
Ao passo que os intelectuais
O que fazem
É macaquear
A sintaxe dos brasileiros do sudeste
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam.
Manaus.
Rua Recife...
A casa de minha avó...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Manaus...
Minha avó morta
Manaus morta, Manaus boa, Manaus amazônida
como a casa de minha avó.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Cultura, tradição e escritura 2/4


Tenório Telles

Platão – crítica e imitação

A crítica nasceu com a Filosofia. Uma das primeiras reflexões sobre a poesia e a função do poeta na sociedade foi empreendida por Platão na sua obra mais expressiva, A República, escrita no século IV a.C. O julgamento do filósofo foi desfavorável aos artífices da palavra: considerados como meros “imitadores de imagens da virtude e também de tudo o mais sobre o que versam seus poemas e que não atingem a verdade” (PLATÃO, 2014, p. 389).
O foco da apreciação de Platão foi o autor da Odisseia que, sendo um imitador “por meio de palavras e frases” seria incapaz de colaborar para educar os homens e, assim, torná-los melhores. Outro pecado a justificar seu ponto de vista sobre a poesia, expressa na figura de Homero, deve-se ao fato de despertar, nos interlocutores dos textos poéticos, emoções capazes de ofuscar-lhes a razão:
Do mesmo modo, diremos que o poeta imitador cria uma constituição má dentro da alma de cada um, porque favorece o que ela tem de irracional e não discerne nem o maior nem o menor, mas ora julga grandes, ora pequenas as mesmas coisas, criando imagens vazias, mantendo-se, porém, bem afastado da verdade (PLATÃO, 2014, p. 396).

A severidade de Platão, motivada pela sua perspectiva utilitária da arte, resultou num posicionamento radical em relação ao poeta: o qual não deveria ser acolhido na cidade que imaginava (“governada por boas leis”), “pois ele desperta e nutre essa parte da alma e, tornando-a forte, destrói a razão” (PLATÃO, 2014, p. 396). Evidentemente, os critérios suscitados pelo autor de A República não eram estéticos, mas de caráter moral e político.
Essas primeiras reflexões já trazem os fundamentos que embasarão os debates sobre a natureza da arte, o sentido da criação – compreendendo o criador e a obra – e o seu papel social. E perpassando esses elementos, os critérios de julgamento e recepção dos objetos artísticos.

Arte e labor criativo

O texto em epígrafe, do poeta e crítico T. S. Eliot, retoma o discurso sobre o processo artístico em outros termos: entende a arte em seu sentido histórico e como labor criativo, que demanda dedicação e trabalho para ser apreendido. Isso significa que o artista é um sujeito que se constrói pelo esforço individual e como parte de uma tradição. Conhecê-la e apropriar-se de seu vasto repertório técnico e estético é imprescindível no processo criador e na renovação das expressões artísticas. Eliot (1989, p. 39) considerava que
nenhum poeta, nenhum artista tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si...

A perspectiva de Eliot sobre a cultura é diacrônica – em que passado e presente se imbricam como num jogo de espelhos em que um se reflete no outro, engendrando, assim, as possibilidades do futuro. Funde-se no outro, gerando um calidoscópio de formas e cores difusas, ambíguas e inapreensíveis – metáfora viva da arte. Esse ponto de vista do autor de A terra desolada faz parte de sua visão do fenômeno histórico e do fundamento estético que enforma sua produção poética (uma vez que a entendia como “princípio de estética”). A leitura da primeira parte do poema Quatro quartetos, intitulada “Burnt Norton”, é evocativa desse olhar sobre o tempo – compreendido como grandes fluxos superpostos que se autodeterminam:
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é eternamente presente
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpetua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
(ELIOT, 1981, p. 199)

A cultura, a arte e a história constituem uma “totalidade” em movimento, em continuidade permanente – em que os fluxos temporais se imbricam, se amalgamam e fluem, assumindo formas e sentidos novos. Essa relação com a tradição, portanto com o passado, tensionada com o presente, desperta no escritor a consciência de que não é um astro desgarrado e nem é uma subjetividade fechada em si mesma, mas compreende-se situado na constelação dos criadores e “ferrageiro” do verbo: assim, situa-se, “para contraste e comparação, entre os mortos” (ELIOT, 1989, p. 39). O novo se funda sobre os alicerces do ontem – em que o hoje logo será ultrapassado pelo devir da grande máquina do mundo que torna tudo inapreensível e crepuscular.
Essa consciência não é um atributo imperativo apenas para o poeta, mas para todos os que se dedicam à palavra – seja o crítico, o professor, o autor: todos são chamados a refletir sobre as implicações estéticas e históricas de seus ofícios – sobretudo a “responsabilidade” como criadores e formadores, pois é inegável, sem descurar o aspecto estético, o caráter pedagógico das artes. O interesse pelo objeto artístico, como experiência de fruição da beleza, decorre da necessidade e do prazer experimentado pelos homens. Para Aristóteles (2011, p. 42), “A razão disto é também que aprender não sé só agradável para os filósofos, mas é-o igualmente para os outros homens, embora estes participem dessa aprendizagem em menor escala”.
O crítico, em particular, para levar a termo seu ofício, não pode prescindir do histórico, compreendido como o espaço das vivências, do aprendizado e repositório dos avanços técnicos, estéticos e dos conhecimentos. Inquisidor de seu tempo, portanto um contemporâneo, o crítico estende suas pontes entre as margens do grande oceanotempo da cultura, propiciando, como destaca Agamben (2002, p. 71): “um encontro entre os tempos e as gerações”.
A atividade crítica pressupõe uma atitude profissional e uma formação adequada para o seu exercício. Em se tratando de crítica literária, exige-se, como nos lembra Leyla Perrone-Moisés (2016, p. 68), “bagagem cultural e argumentos, e estes necessitam de um mínimo de fundamentação teórica, que só se adquire na prática de muita leitura ‘de’ e ‘sobre’ literatura... (e) requer formação e profissionalismo”.
O pacto da criação literária se estabelece por meio da relação do escritor com o leitor. O ponto de convergência entre os dois é o objeto artístico. O crítico literário, com seu conhecimento da tradição e domínio dos critérios estéticos e de legitimação da obra criativa, pode ajudar de forma construtiva na aproximação dos leitores dos textos literários e, assim, contribuir com sua formação. Isso esclarece a afirmativa de Eliot quando ressalta que o conhecimento do antigo e do novo é uma consciência que se exige do crítico e, ao mesmo tempo, é uma grande responsabilidade.
Crítico dos mais qualificados, Umberto Eco (2016, p. 272) considera que na definição da obra de arte “os valores (o ‘antes’ que está na origem da obra e o ‘depois’ ao qual se dirige a obra) só se resolvem em estrutura”. Como um corpus tecido com palavras, ideias e imagens, o objeto artístico pode expressar princípios contrastantes com a opinião do crítico ou ser afirmativo de posicionamentos preconceituosos. Nesse aspecto, é imperativa a capacidade de julgar do analista, que deve agir com distanciamento, honestidade e instrumentalizado de critérios estéticos claros. Eco problematiza a possibilidade de discordância em relação aos valores que enformam uma obra de arte, podendo contestá-la e apontar-lhe as fraquezas. A validade do objeto analisado é outra possibilidade e, por isso, conclui que
A tarefa do crítico pode ser também e especialmente esta: um convite a escolher e a discernir. Cada um de nós, lendo uma obra literária, ainda que professe os critérios técnico-estruturais aqui expostos, deve e pode encontrar uma relação emocional e intelectual, descobrir uma visão de mundo e do homem. É justo que existam pessoas com a sensibilidade mais apurada que nos comuniquem as experiências de leitura para que possam se tornar nossas também (ECO, 2016, p. 272).



domingo, 22 de outubro de 2017

sábado, 21 de outubro de 2017

Fantasy Art - Galeria


Charlie Terrell.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Platônica


Zemaria Pinto


ai, que já me arde a febre do desejo
volúpia de te ver, tocar, amavelmente
no ritual cotidiano das tardes mais banais

como não sonhar com teu colo pálido
e a sarda que se espalha
pelo teu braço infinito?

as minas de rosáceas do teu peito
espalham nervos na sala entorpecida
pela pressa de chegar de onde se vem

sempre – cotidianamente
a carne dos teus lábios
roçagando minha barba por fazer

a língua desfaz-se em fogo
adivinhando tua língua de silêncios
meu coração delira preces pagãs

a palavra – um convite? um carinho?
desaba dentro de mim
borboleta abatida a escopeta

um helicóptero sobre minha cabeça
cavalga walkírias & fúrias
fim do expediente

(amor? amor um cacete
você não existe
o tesão não resiste

você não precisa saber
que a vida não vale nada
sem você!)

Concerto na Academia celebra a obra de Telemann



Possibilidade de uma ética pré-social



João Bosco Botelho
 
É razoável pensar a Medicina e o Direito como partes fundamentais da ontogenia, ambas voltados à valorização da vida em torno da ética e da moral, estruturando os bons resultados: os agentes da Medicina controlando a dor e empurrando os limites da vida e os agentes do Direto construindo mecanismos sociais e políticos para evitar a antijuricidade. 
A característica universal da ação moral, citada por Kant; isso é, a busca incessante para que o comportamento humano estivesse sempre ao lado da virtude, ultrapassa as relações sociais em si mesmas. Não é impertinência pensar que esse desejo humano, desde um passado impossível de precisar, de valorizar a virtude como antagonismo ao vicio, seja um processo sociogenético gerado ao longo da humanização, ligado à sobrevivência desde os ancestrais mais distantes.
Incontáveis culturas, nos quatro cantos do mundo, pelo menos desde os primeiros registros de natureza religiosa e laica, continuam lutando para instrumentalizar regras valorizando a ética junto da moral como características insubstituíveis e universais, como genialmente Kant descreveu, da condição humana.
É possível articular um pensamento teórico entendendo esse conjunto como pré-social, isto é, inserido na herança genética, ao longo da ontogenia, resultando na existência de uma ou mais memórias-sócio-genéticas (processo teórico para explicar alguns aspectos da organização social), ligadas à valorização da virtude, da moral, da ética, como instrumentos para adequar a sobrevivência coletiva e superar os contrários que dissolvem sem reconstruir. Simultaneamente, essas memórias sociogenéticas (MSGs) também interferem na manifestação pessoal e coletiva do desprezo ao vício, que corrompe e compromete a sobrevivência.
Esse conjunto organizador social presente nas MSGs, vinculado à sobrevivência e ao ajuste ético-moral, no processo da ontogenia, amparando a vida pessoal e coletiva, claramente desprezando o vício (aqui compreendido como oposição ao ético-moral, à virtude) se manifesta socialmente por meio de categorias metamórficas, também presentes nos cinco continentes, entre culturas que nunca mantiveram contato, amparando a sobrevivência pessoal e coletiva, com forte participação da Medicina e do Direito. 
É difícil atribuir a atávica busca da virtude somente às relações sociais!

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Fantasy Art - Galeria


Pascal Blanché. 


terça-feira, 17 de outubro de 2017

Manaus, terra dos barés


Pedro Lucas Lindoso


Tia Idalina é a mais ilustre amazonense dos moradores de Copacabana. Pelo menos uma vez por mês convoca amigos, sobrinhos e conhecidos de Manaus para um tacacá. Compra tucupi goma e jambu de uma senhora paraense moradora de Quintino, subúrbio do Rio de Janeiro.
Estava por lá no último tacacá. O assunto era o aniversário de Manaus. Tia Idalina se lembrou de uma grande comemoração. E nos contou:
– Eu era menina quando se comemorou os 100 anos de Manaus. 24 de outubro de 1948. Fiquei abismada quando soube agora que a cidade vai fazer 348 anos! Então liguei para Etelvina Garcia. Fiquei aliviada. Ainda não estava caduca. Ela, grande conhecedora de nossa História, confirmou as comemorações. Explicou-me que em 24 de outubro de 1848 não só Manaus, mas também Santarém e Cametá foram elevadas à categoria de cidade, por lei advinda da Assembleia Legislativa da Província do Grão Pará!  A Província do Amazonas só seria criada em 5 de setembro de 1850.
– Eram vilas e tornaram-se cidades! E completou lembrando que a origem de Manaus foi o forte de São José do Rio Negro. Não se sabe o dia nem mesmo o mês da construção do forte. Mas o ano é 1669. Daí a celebração dos 348 anos! Uma mescla de datas e celebrações.
Um dos convidados, que obviamente não era amazonense, questionou se éramos manauenses ou manauaras. Teria ouvido dizer que manauaras eram “os que ficavam mais perto dos índios” e que manauenses “eram os mais urbanos”.
Tia Idalina quase desmaiou com a imbecilidade posta na conversa. Alguém subitamente foi se socorrer de um dicionário. Trouxe o dicionário Houaiss, hoje mais festejado que o Aurélio. As duas formas são aceitas. Substantivo comum de dois gêneros. Relativo ou pertencente à Manaus “o que é seu natural ou habitante”.
Fui instado a opinar. Pedi desculpas ao carioca desavisado e disse aos convivas que já ouvi outras baboseiras procurando diferenciar manauara de manauense. Eu prefiro manauara. O jornal Acrítica usa manauense. Historicamente somos todos amazonenses. Os dicionários estão, obviamente, corretos, ambas as formas são aceitas.
Mas na verdade, Manaus é “terra dos barés, dos igarapés, rios colossais”, como diz a velha canção que aprendi no jardim da Infância Visconde de Mauá.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Cultura, tradição e escritura 1/4


Tenório Telles


Resumo
Este artigo se estrutura como uma reflexão sobre a crítica e a criação literária, considerando a palavra como fundamento do labor criativo e instrumento do escritor no seu processo de concepção e representação do mundo. Busca-se na tradição, no sentido atribuído a ela por T. S. Eliot, a compreensão para o trabalho do crítico – sua responsabilidade e atributos teóricos como condição para o exercício da compreensão e julgamento do texto literário. Como uma interlocução reflexiva, referencia-se no diálogo com estudiosos e poetas que refletem sobre a experiência criadora e sua escritura.

A tradição implica um significado muito mais amplo. Ela não pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquistá-la através de grande esforço. Ela envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico... (e) implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença.
T. S. Eliot

Introdução
O poeta João Cabral de Melo Neto (2010, p. 335), no poema “O ferrageiro de Carmona”, discute o processo criativo e, ao mesmo tempo, expressa seu ponto de vista sobre seu labor poético. A partir da arte do “ferrageiro”, o autor pernambucano problematiza duas concepções sobre a arte de criar ou malhar o ferro. O texto se constrói como um diálogo entre o eu lírico e o ferreiro de Carmona, que informava de um balcão seu conhecimento sobre a técnica de dar forma a um artefato metálico:

Aquilo? É de ferro fundido,
foi a fôrma que fez, não a mão.
(...)
Conhece a Giralda, em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?
Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.

Apresentadas as duas abordagens sobre o fazer artístico, desdobram-se as explicações sobre o fundamento, o significado e a perspectiva do artista em relação à sua criação. O ferrageiro esclarece que “o ferro fundido é sem luta / é só derramá-lo na fôrma”. Em contraposição, afirma sua predileção pelo “ferro forjado / que é quando se trabalha o ferro / então, corpo a corpo com ele, / domo-o, dobro-o, até onde quero”.
Subjaz no poema a tradicional discussão sobre a mímesis. As duas proposições remetem ao debate entre Platão e Aristóteles sobre a relação entre as ideias e os objetos criados. Se, para Platão, os objetos são mera imitação de formas supraterrenas, para Aristóteles, o ato criativo e a própria imitação são atributos humanos, associados à habilidade e ao domínio da técnica que enseja o labor artístico, como ressalta na Poética:

Estando, pois, de acordo com a nossa natureza a imitação, a harmonia e o ritmo (é evidente que os metros são partes dos ritmos), desde tempos remotos, aqueles que tinham já propensão para estas coisas, desenvolvendo pouco a pouco essa aptidão, criaram a poesia a partir de improvisos (ARISTÓTELES, 2011, P. 43).

O poema de João Cabral depreende as duas perspectivas: a platônica, expressa na ação do ferreiro que trabalha com o “ferro fundido”, vazado na “fôrma”, em que “as flores” são “moldadas pelas das campinas”, que, segundo Platão, já seriam uma imitação de formas transcendentes. A concepção aristotélica vincula-se à técnica do “ferro forjado”, que pressupõe, além do domínio da arte, a destreza do ferrageiro: “Só trabalho em ferro forjado / que é quando se trabalha o ferro”. O criador impõe à sua criação as marcas de sua subjetividade, compreensão e método laborativo.
As proposições de Platão e Aristóteles são incontornáveis nos estudos sobre o fenômeno criativo, os fundamentos da arte e sobre a interpretação dos objetos artísticos. Suas reflexões plasmam o pensamento dos variados críticos e, ao mesmo tempo, são afirmadoras da força e importância da tradição, entendida simbolicamente como monumento vivo e em contínuo processo de imbricação com o novo e atualização, como sublinha T. S. Eliot (1989, p. 39, grifo do autor):

Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo. Quem quer que haja aceito essa ideia de ordem... não julgará absurdo que o passado deva ser modificado pelo presente tanto quanto o presente esteja orientado pelo passado.

A construção deste estudo referencia-se nessas balizas teóricas que fundaram a compreensão do processo criativo e a consolidação do pensamento crítico sobre o texto literário e sua escritura, entendidas como parte de uma tradição que se reatualiza permanentemente:

Esse sentido histórico, que é o sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos, é que torna um escritor tradicional. E é isso que, ao mesmo tempo, faz com que um escritor se torne mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua própria contemporaneidade (ELIOT, 1989, p. 39).

Originalmente, publicado na revista Kalíope. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP. ISSN 1808-6977, v. 12 n. 24 – 2017.
Aqui, será publicado, sempre às segundas-feiras, em quatro partes.