Amigos do Fingidor

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Cultura, tradição e escritura 3/4


Tenório Telles


Machado e “a crítica pensadora”

No dia 8 de outubro de 1865, Machado de Assis publicou, no Diário do Rio de Janeiro, uma crônica intitulada “O ideal do crítico”. O texto, considerando seu caráter argumentativo reflexivo, aproxima-se do ensaio, embora conserve o tom de diálogo peculiar característico do cronista. Machado antecipa muitas questões que serão objetos de debate no século seguinte. Ao versar sobre a crítica, intima os estudiosos a exercitarem
a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata(...) a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada(...) condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença – essas três chagas da crítica de hoje –, ponde em lugar deles, a sinceridade, a solicitude e a justiça – só assim teremos uma grande literatura (ASSIS, 1979, p. 798)

A tradição e o domínio dos procedimentos criativos não são suficientes para gerar a obra literária – ou as obras de arte em geral. Um elemento particular é imperativo na faina criativa – o talento: entendido como atributo de uma sensibilidade artística singular (como diz Eliot (1989, p. 39): “o fragmento de platina”, prefigurado na mente do poeta): “quanto mais perfeito for o artista, mais inteiramente estará nele o homem que sofre e a mente que cria; e com maior perfeição saberá a mente transfigurar as paixões que lhe servem de matéria-prima”.
Talento, conhecimento e emoções mesclam-se no processo de gestação da obra de arte. Essa não é uma experiência destituída de tensão e de um forte componente demiúrgico. O texto escrito (poesia ou prosa) é gerado nas entranhas de seu criador: nutre-se de seu sangue, de seus sonhos e razão, de suas emoções e angústias mais profundas. Por isso, o ato criativo é uma experiência de morte e de vida, em que o artista sacrifica tempo e muito de si mesmo para que a criação nasça e seja compartilhada socialmente. A escritura é um raio que brota dos abismos do ser, pois, como afirma Rainer Maria Rilke (2011, p. 134): “A cada obra de arte vem ao mundo algo novo, uma coisa a mais”. Esse novo a que se refere é também continuidade da linhagem a que se vincula todo agente da criação – enriquecendo, com seus esforços e realizações criativas, o patrimônio artístico da humanidade.
A inquietude e o desejo de dizer de si e do mundo, que movem o artista, são forças geradoras da criação. Desassossego e falta expressam a humana condição num tempo e mundo estiolados, esvaziados de seus fundamentos: época precária, opaca e inominável – fênix destituída de sua mágica recriadora. Encantados pela esfinge do paraíso consumista, os seres humanos perdem-se entre as sombras e a paralisia de uma vida inautêntica. A arte é o antídoto para esse viver letárgico e arruinado. Resta-nos a Palavra como possibilidade de testemunho desse estar-no-mundo indiferente, mas também como libertação – ou como disse Fernando Pessoa (apud PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 105): “uma confissão de que a vida não basta”. Não basta se não for vivida com encanto, com consciência e como ato libertário. A beleza é o sangue capaz de reavivar a existência e restabelecer os fundamentos primordiais da civilização.