Tenório Telles
A
palavra como reconciliação com o mundo
O poeta francês Francis
Ponge (1997, p. 67), ao refletir sobre a capacidade do poeta de fundar o mundo
por meio da palavra, pondera que esse poder “lhe vem... de uma possibilidade
para o funcionamento do mundo e de uma violenta necessidade de integrar-se a
ele, depois... de uma particular aptidão para manejar, ele próprio, uma determinada
matéria”. Essa matéria não é outra senão a linguagem: capacidade instauradora
de nossa humanidade e ponte que nos liga à realidade e às coisas. Ponte que nos
liga ao ontem, ao hoje e ao futuro. Somos filhos do verbo – nascidos das entranhas
do silêncio originário e do irrevelado que move o vento, as águas, os ciclos da
vida – o cosmos, como desvelou Dante (1976, p. 63):
A
fantasia agora está calada;
mas
já renovo as forças, que a movê-las
vai
a roda a girar sempre ordenada,
do
Amor que move o sol e move estrelas.
Evocar a existência e
transfigurá-la pela força do verbo é um dos atributos significativos dos que se
dedicam à faina de encantar as palavras, revesti-las de plumas e asas – que é
também um ato de desvestir a realidade e revelar-lhe sua impalpável carnadura,
seus mistérios, sua ossatura. Só a linguagem permite esse mergulho no ser do mundo
e nas águas do tempo em que somos. Ponge (1997, p. 69) considera que o poeta deve
reatualizar permanentemente seu pacto com a vida para não se perder:
Tanto
mais que, em sua atividade de dominação do mundo, ele corre o risco de se alienar,
ele precisa, a cada instante, aí está a função do artista, graças às obras de
sua preguiça, se reconciliar com o mundo.
A consciência do tempo, a
compreensão de nossa presença no mundo e o sentido de nossa condição como seres
históricos e criativos são os fundamentos capazes de nos impulsionar para uma
outra possibilidade de vida – fundada no esclarecimento, na tolerância e no
cultivo do belo. Isso só será possível, como nos alerta Eliot, quando compreendermos
que somos parte de uma “totalidade”: quando entendermos que estamos/somos no
ontem, no hoje e no amanhã – inapreensível prefiguração dessa convergência de
tempos. O poeta evocou nossa trágica condição (não como algo irremediável), mas
como devir – suspenso e indefinido:
Dayadhvam:
ouvi a chave
Girar
na porta uma vez e apenas uma vez
Na
chave pensamos, cada qual em sua prisão
E
quando nela pensamos, prisioneiros nos sabemos
Somente
ao cair da noite é que etéreos rumores
Por
instantes revivem um alquebrado Coriolano
(...)
Sentei-me
junto às margens a pescar
Deixando
atrás de mim a árida planície
Terei
ao menos minhas terras posto em ordem?
(ELIOT,
1981, p. 105)
Teremos coragem de nos
assenhorarmos da chave? De abrir a porta? De nos fazermos viajantes dessas
planícies agrestes, desses desertos que não cessam de ultrapassar suas
fronteiras? Teremos coragem de contemplar o firmamento e nos deixarmos, como
homéricos navegantes, guiar pelos caminhos das estrelas? Na contracorrente dos
tempos, acendo minha fogueira e desfio a tapeçaria da memória: “Com fragmentos
tais foi que escorei minhas ruínas” (ELIOT, 1981, p. 106).
REFERÊNCIAS
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