Amigos do Fingidor

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Cultura, tradição e escritura 4/4


Tenório Telles


A palavra como reconciliação com o mundo

O poeta francês Francis Ponge (1997, p. 67), ao refletir sobre a capacidade do poeta de fundar o mundo por meio da palavra, pondera que esse poder “lhe vem... de uma possibilidade para o funcionamento do mundo e de uma violenta necessidade de integrar-se a ele, depois... de uma particular aptidão para manejar, ele próprio, uma determinada matéria”. Essa matéria não é outra senão a linguagem: capacidade instauradora de nossa humanidade e ponte que nos liga à realidade e às coisas. Ponte que nos liga ao ontem, ao hoje e ao futuro. Somos filhos do verbo – nascidos das entranhas do silêncio originário e do irrevelado que move o vento, as águas, os ciclos da vida – o cosmos, como desvelou Dante (1976, p. 63):
A fantasia agora está calada;
mas já renovo as forças, que a movê-las
vai a roda a girar sempre ordenada,
do Amor que move o sol e move estrelas.

Evocar a existência e transfigurá-la pela força do verbo é um dos atributos significativos dos que se dedicam à faina de encantar as palavras, revesti-las de plumas e asas – que é também um ato de desvestir a realidade e revelar-lhe sua impalpável carnadura, seus mistérios, sua ossatura. Só a linguagem permite esse mergulho no ser do mundo e nas águas do tempo em que somos. Ponge (1997, p. 69) considera que o poeta deve reatualizar permanentemente seu pacto com a vida para não se perder:
Tanto mais que, em sua atividade de dominação do mundo, ele corre o risco de se alienar, ele precisa, a cada instante, aí está a função do artista, graças às obras de sua preguiça, se reconciliar com o mundo.

A consciência do tempo, a compreensão de nossa presença no mundo e o sentido de nossa condição como seres históricos e criativos são os fundamentos capazes de nos impulsionar para uma outra possibilidade de vida – fundada no esclarecimento, na tolerância e no cultivo do belo. Isso só será possível, como nos alerta Eliot, quando compreendermos que somos parte de uma “totalidade”: quando entendermos que estamos/somos no ontem, no hoje e no amanhã – inapreensível prefiguração dessa convergência de tempos. O poeta evocou nossa trágica condição (não como algo irremediável), mas como devir – suspenso e indefinido:
Dayadhvam: ouvi a chave
Girar na porta uma vez e apenas uma vez
Na chave pensamos, cada qual em sua prisão
E quando nela pensamos, prisioneiros nos sabemos
Somente ao cair da noite é que etéreos rumores
Por instantes revivem um alquebrado Coriolano
(...)
Sentei-me junto às margens a pescar
Deixando atrás de mim a árida planície
Terei ao menos minhas terras posto em ordem?
(ELIOT, 1981, p. 105)

Teremos coragem de nos assenhorarmos da chave? De abrir a porta? De nos fazermos viajantes dessas planícies agrestes, desses desertos que não cessam de ultrapassar suas fronteiras? Teremos coragem de contemplar o firmamento e nos deixarmos, como homéricos navegantes, guiar pelos caminhos das estrelas? Na contracorrente dos tempos, acendo minha fogueira e desfio a tapeçaria da memória: “Com fragmentos tais foi que escorei minhas ruínas” (ELIOT, 1981, p. 106).

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, GIORGIO. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
ARISTÓTELES. Poética. 4 ed. Trad. Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Vol.III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979, p. 798-801.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. 2. ed. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
DANTE. 6 cantos do paraíso. Trad. Haroldo de Campos. Rio de Janeiro: Fontana; São Paulo: Istituto Italiano di Cultura, 1976.
ECO, Umberto. A definição da arte. Trad. Eliana Aguiar. São Paulo: Record, 2016.
ELIOT, T. S. Ensaios. Trad. Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989.
______. Poesia. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
MELO NETO, João Cabral de. Melhores poemas. 10. ed. Sel. Antonio Carlos Secchin. São Paulo: Global Editora, 2010.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
______. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
PLATÃO. A República. 2. ed. Trad. Ana Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
PONGE, Francis. Métodos. Trad. Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
RILKE, Rainer Maria. A melodia das coisas. 2. ed. Trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.