Amigos do Fingidor

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Pajé ou xamã



João Bosco Botelho


E interessante o rumo europeu que tomou a qualificação dos pajés na literatura especializada. Recentemente, foi introduzida a palavra xamã como sinônimo de pajé. Na realidade, o termo xamã é derivado do francês, “chamam”; do alemão, “schamane” e do russo, “saman”. Por outro lado, o xamanismo é a religião de certos povos do norte da Ásia e são baseados na primitiva crença de que os espíritos maus e bons podem ser dirigidos pelos xamãs para promover a bondade ou a maldade.
Júlio César Melatti (“Índios no Brasil”, 5ª ed.), adotou a religião asiática para diferenciar os pajés brasileiros: “Existe uma certa categoria de médicos-feiticeiros que recebe o nome especial de xamãs. O que caracteriza o xamã é poder fazer de um estado de êxtase, durante o qual sua alma se retira para longe do corpo, percorrendo lugares distantes, ou durante o qual nele se encarna um espírito estranho”.
A mesma compreensão é encontrada em Berta Ribeiro (“O Índio na cultura brasileira”): “Na pajelança – fenômeno talvez concentrado na Amazônia – é que se faz sentir com mais força a influência indígena. O pajé não é apenas o benzedor. É mais que isso. Adivinha os pensamentos, os acontecimentos, previne-os e os combate. Os processos de cura do pajé aproximam-se do xamanismo tupi: a par da introdução da cachaça, registra-se o uso do cigarro, do maracá, de rezas”.
Do mesmo modo, Viveiro de Castro (“Alguns aspectos do pensamento Yawalapiti, Alto Xingu”): “Duas figuras da sociedade humana mantêm uma relação especial com os apapalutapa: os xamãs e os feiticeiros. O espírito – qualquer um – é por definição um xamã”.
É possível argumentar existir algum equívoco entre os significantes simbólicos do pajé e do xamã, que pode ser consequência da introdução por antropólogos e etnólogos europeus da palavra xamã nos seus trabalhos sobre os índios das Américas. Contrariamente, os cronistas e viajantes dos séculos 16 e 17 só utilizaram a palavra pajé.
Egon Schaden (“Las religiones indigenas de Amerca del Sur”) também igualou o xamanismo à pajelança: “La literatura etonologica referente a América del Sur designa frequentemente com el nombre de chamanismo el conjunto de practicas y funciones inherentes a esta profesion. El chamam indio puede a menudo ser tambien em hechicero, o ser considerado como tal, pero seria erronso aplicarle esta denominacion de modo indiscriminado. El ejercicio de la medicina figura casi siempre entre sus pincipales atribuciones, y este hecho se explica por el origem sobrenatural de la mayoria de las enfermidades”.
Talvez o ponto comum entre os autores que identificaram igualdades entre o pajé e o xamã tenha sido o etnólogo Herbert Baldus por meio das publicações: “Ensaios de Etnologia Brasileira”, “O Xamanismo” e “Sugestões para pesquisas etnográficas e a bibliografia crítica da etnologia brasileira”.
As descrições publicadas pelos cronistas dos atributos e das funções dos pajés, nos séculos 16 e 17, são diferentes das dos xamãs. Os pajés não eram só curadores que se “comunicavam com os espíritos”, eles iam muito além: interferiam no conjunto social, previsão do tempo, processos migratórios e melhor hora de plantar e colher, além de opinar sobre a guerra.
D´Abbeville foi preciso: “Poucos entre eles desconhecem a maioria dos astros e estrelas de seu hemisfério; chamam-nos por seus nomes próprios, inventados pelos seus antepassados... Temos entre nós a poussinière, que muitos conhecem e que denominam seichu. Começa a ser vista, em seu hemisfério, em meados de janeiro, e mal a enxergam afirmam que as chuvas vão chegar, como chegam efetivamente pouco depois.”
É evidente que não se trata de adivinhação. Representava o resultado do conhecimento historicamente acumulado do pajé, muito além da cura de doenças. O mesmo pode ser suposto em relação à guerra.
Esse extraordinário conjunto de saberes sob a guarda do pajé contribuiu não só para o imenso destaque tribal, mas, principalmente, pela expressa determinação do elemento colonizador para destruí-lo moral e fisicamente como condição para atenuar a resistência.
Sob esses argumentos é possível trazer à discussão o equívoco de entender o xamã como sinônimo de pajé.