Jorge Bandeira
Há montanhas de problemas que nos encerram
por todas as partes: infeliz de quem pensou escapar aos problemas, infeliz de
quem acreditou poder dispensar-se de pensar.
(Antonin Artaud – A
Evidência da Luz que Cega)
Tartufo-me. Um Teatro Produções. Assustador. Necessariamente,
assustador. O crítico não esboçou uma única risada. Os tempos do Pastor Tartufo
não são os da comédia, são tempos de assassinato e de prisões, prisões físicas
e, as piores, as prisões do espírito. A direção de Tércio Silva é um lampejo de
alento cênico a este tempo de extrema crueldade e ignorância, de truculências e
idiotices, sandices e discursos odiosos. O padeiro de Tartufo-me modela uma massa disforme, alegoria de seu cérebro
carcomido pelo fermento mortal da estupidez humana. O crítico patafísico ficou
extasiado de tanta bem-vinda provocação. O crítico patafísico também observou
com pesar alguns tartufos disfarçados na plateia do Teatro Amazonas, numa
excepcional terça-feira, 10/04/2018, com bilheteria satisfatória e que, pelo
honesto e profissional trabalho de divulgação da Um Teatro, encheu além da
metade das cadeiras da plateia. Para o teatro local, não caça-níquel e sem
cadastrões globais, é um feito memorável.
Tartufo-me é uma aula de cidadania, e de
Teatro. Dimas Mendonça é de uma incrível versatilidade cênica: seu corpo atua
por inteiro. Ele também é o adaptador desse texto monologal, oriundo do
brilhantismo de Molière. O monólogo é sarcástico e vibrante, e Mendonça
dispensa maiores apresentações: seu trabalho de ator e performer em Manaus é
respeitado por todos, ele é um gigante no palco, sua voz é de uma limpidez e
elegância que nos delicia ouvi-la empreender tons e guturaçoes à personagem vil
do Pastor Tartufo. Mendonça facilmente e com maestria nos transporta para as
transubstanciações do corpo e alma fáustica desse abominável personagem.
O perigo talvez seja o excesso de empatia que a personagem
tirana, ditatorial e autoritária venha a exercer no espectador menos preparado,
mas creio firmemente que as amarras de condução cênicas do diretor impedem a
empatia de se aproximar. A música do multinstrumentista Jeferson Mariano
costura toda a trama, com muita dinâmica e desenvoltura, casando-se
perfeitamente às cenas, num equilíbrio eficaz para este Teatro sutil, grotesco
e extravagante, no sentido paradoxal que isso venha a ter. O figurino e a
cenografia, iluminação e visagismo da RS são economicamente teatrais, o que
reforça o brio interpretativo de Dimas Mendonça. O monólogo é de um realismo
inquietante, tudo que ali no palco de Tartufo-me
é uma aproximação, pois creia, leitor@, o real é mais pavoroso ainda.
Tartufo-me aponta um caminho para escaparmos
destas anomalias do modelo torpe de salvação calvinista cristã. Escancara as
falsidades que imperam nos dias atuais, em todos os segmentos desta
desumanidade. A única coisa que me causa horror deste espetáculo é que seu
final crie vida e se concretize na vida real, que a sombra do mal vença e
adentremos verdadeiramente naquele inferno.
Antonin Artaud não está à toa na epígrafe que abre este
artigo. O crítico patafísico, por fim, deseja merda a Tartufo-me, que não ocorram perseguições e violências de quaisquer
natureza a sua equipe e a Um Teatro... Os tempos não estão para brincadeiras e
aleivosias inquietantes a esta milenar arte do Teatro.
[Assinado psicograficamente por Dougaldst, nosso primeiro
crítico do Teatro Amazonense, segundo tese de mestrado de Simone Villanova A História dos Pequemos Teatros de Manaus
(1859-1900).]
Nota do editor: Tartufo-me
inaugurou temporada nesta terça-feira, no Teatro Amazonas. Infelizmente, não se
sabe quando e nem onde serão as próximas apresentações. Manaus...